sábado, 19 de agosto de 2017

Olivier Messiaen e as teçi-tâlas da música clássica indiana.

Organizado por Marcello Ferreira Soares Junior

Aviso aos navegantes: Esse texto (rascunho) é bem antigo por isso dei uma repaginada.  Além disso, o objetivo original não era apresenta o assunto de forma profunda. Ele era apenas um atrapalho para uma cadeira da faculdade. Assim, observações e complementos são bem vindos. 

Espero que ao tirar o texto da gaveta que ele ao menos sirva para alguém como uma introdução ao tema. 

Sugestão: caso você queira se aprofundar mais no assunto do texto sugiro busque na internet alguma versão (dá para baixar em pdf) do livro "The Technique of my Musical Languague" de autoria de Messiaen.
Introdução
O objetivo deste texto é apresentar de forma rápida exemplos das idéias de manuseio rítmico de Messiaen inspirado no estudo das teçi-tâlas da música clássica indiana. Também de forma superficial apresentar algumas formas de aplicação utlzadas pelo compositor e, sua música. 

Iremos aqui nos deter a três aspectos básicos do ritmo em Messiaen (aspectos que marcaram a obra): os valores adicionados, a aumentação e diminuição do valor das figuras rítmicas e os ritmos não retrogradáveis.


1. Influência Oriental no ocidente musical do século XX.

O olhar para a cultura do oriente na Música Ocidental se tornou uma tendência a partir de século XIX até o início do século XX. Muitas vezes carregada de orientalismo essa tendência advinha inicialmente do gosto pelo exotismo que tanto dominava o imaginário dos compositores (e dos artistas) do período românticos. No inicio do século XX essa tendência foi motivada pela busca por novas idéias artísticas e musicais.

A busca por "novas ideias" vindas das culturas musicais distantes da europa ocidental, refletiu-se na adoção, na adaptação ou na abstração de técnicas e usos daquela música a estética ocidental. Podemos citar como exemplo o uso das escalas pentatônicas e adapatação  de estruturas rítmicas re rementem a música balinesa nas obras de Debussy tais como os Trois Nocturnes, Images pour orchestra e Pagodes para piano. 

Mais tarde, a influência dessas músicas não se resumiu ao campo da adaptação de técnicas e estruturas. John Cage buscou conceitos de tempo e espaço na cultura budista para forjar uma nova compreensão do tempo e espaço na música ocidental

Se debruçar sobre o estudo da música fora do espaço da cultura ociental se tornou costumeiro entre os compositores (Alois Habá e sua abordagem microtonalismo da música folclorica Hungara e dos balcãs ou Stockhausen conceitos de temporalidade do xintoismo e forma e expressão adapatados do teatro kabuki e noh japonês).

É importante colocar que muitos compositores resumiram-se apenas a extrair os aspectos que lhe pareceram interessantes para em seguida manuseá-los a sua maneira pessoal, em raros casos tivemos uma aplicação dos aspectos técnicos minimamente próximos a sua forma original. Uma antropofargia cultural.

2. Messiaen e as deçi-tâlas.

2.1. Importância do ritmo para Messiaen e o primeiro contato com as deçi-tâlas.

Numa conferência proferida pelo compositor em 1958, Olivier Messiaen [1908-1992] se referiu ao ritmo como: “... elemento essencial da música...”. Deste de muito cedo em sua carreira, o papel do ritmo foi um aspecto de essencial importância para Messiaen. Em seu período de estudos no Conservatório de Paris (1919-30), onde estudou com Maurice Emmanuel e Marcel Dupré, teve contato com estudos da rítmica e métrica da poesia clássica grega (conhecimento crucial para sua concepção musical). 

No mesmo período Messiaen fez outra descoberta de imensa importância, durante uma pesquisa na Encyclopédie de la Musique de Albert Lavignac encontrou uma reprodução do tratado Samgîta-ratnâkara sobre música do teórico hindu Sharngadeva. Nesta reprodução Messiaen encontrou uma tabela onde estavam relacionados 120 figurações rítmicas utilizadas na música indiana, as deçi-tâlas

A descoberta desta tabela e as informações sobre uso dos ritmos ali descritos, trouxe ao compositor novos caminhos para o uso do ritmo na estrutura do seu discurso música.

Durante toda sua carreira, Messiaen extraiu destes textos elementos para sua criação musical e elaborando técnicas que se tornaram famosas na obra do compositor, tais como: os valores adicionados e as técnicas de aumentação e redução rítmica.


2.2. O Samgîta-ratnâkara.

O texto de Sharngadeva é um dos mais importantes da música clássica do subcontinente indiano e é de valor imensurável para aquela cultura. A história da música indiana (ou sul da Ásia), é dividida em três grandes períodos: antigo (da antiguidade até o séc.13), medieval (séc.13 até o séc.16) e moderno (séc.16 nosso dias). 

Essa divisão de períodos é determinada pela natureza das fontes que os orientam como também pela sua correlação com eventos políticos e históricos. 

No período antigo as práticas da tradição musical eram transmitidas de forma oral ou através de manuscritos sem muita especialização (o estudo deste período é muitas vezes ligado à iconografia e a escultura). Esta forma de transmissão era cotidiana nas tradições da prática da sampradaya (esta formação de base na cultura oral também conhecida como tradição pura, a suddha sampradaya, ou a tradição de sucessão de mestre/discípulo, a gurusisya-paramparã), quanto os cânones teóricos (sastra1). 

Com o tempo a codificação dos cânones teóricos (sastra) tornou-se cada vez mais comum. Os textos tratavam de discussões técnicas (escritos em sânscrito e Tâmil) e passaram a ser cada vez mais divulgados e estudados. 

Desta tendência surge no séc. XIII, o samgîta-ratnâkara,  texto que é considerado não só um monumento teórico e documental da música indiana como também um divisor de águas histórico3

O samgîta-ratnâkara foi escrito entre 1210 e 1247 na cidade de Devagiri (atual Daulatabad) por Sharngadeva, este que era um brâmane originário da Kashimira. O texto compila as antigas doutrinas e do conhecimento musical da tradicional. Através do samgîta-ratnâkara as técnicas e maneirismos dos sastra foram transmitidos a vários escritores e teóricos. Chama a atenção no texto sua brilhante organização e articulação metodologica. 

No texto temos informações sobre os mais variados aspectos da prática musical desde técnicas para o manuseio dos instrumentos até aspectos teóricos e estéticos relacionados ao uso estético dos modos (ragas).

samgîta-ratnâkara alcançou tanta influência que a partir dele foram determinaods diversos aspectos e categorias da teoria musical do sul da Ásia. 


1 O termo sânscrito sastra designa um texto que contém uma definitiva exposição de uma doutrina de um campo do conhecimento em particular. Este tipo de texto é bastante difundido na cultura indiana, nas artes temos textos exemplares como natya-sastra que trata da teoria da dramaturgia indiana.
2 Língua dravídica, que é língua oficial no estado de Tâmil Nadu (anteriormente Madras, S.E. da Índia), também falada no Sri Lanka, Malásia, Cingapura e na Indonésia.
3 O samgîta-ratnâkara marca a passagem do período antigo para o medieval.


2.3. Aspectos da rítmica indiana e a influência na técnicas de composição de Messiaen.

O ritmo na música indiana difere da música ocidental tanto no aspecto estrutural quanto na forma que o ritmo é manuseado. Para ilustrar vamos apresentar alguns aspectos de como o ritmo e suas estruturas (métrica, divisão) da tradição do samgîta-ratnâkara.

O ritmo na música indiana está baseado numa segmentação de estruturas articuladas em vários níveis, podemos fazer um paralelo deste sistema de segmentação articulação formal da melodia na música ocidental (tema, frase, período). 

1. A Tala.

No nível mais alto deste sistema de segmentação está a tala. Podemos definir a tala como uma fixa e cíclica repetição de uma determinada “medida-de-tempo musical4”, onde dentro desta temos vários nível mais profundos de articulação5

Ao fazer umparalelo entre a tala e a célula rítmica dentro de um compasso ocidental temos que observar duas importantes distinções entre eles. 

Embora a ideia da tala esteja ligada a uma repetição cíclica de uma celular rítmica fixa. As talas muitas vezes se apresentam muito extensas se comparadas ao compasso da música ocidental. Assim muitas vezes esta extensão nos leva a designar a tala como um equivalente ao período formal. Esta particularidade em relação à variedade de extensão da tala esta ligada ao segundo aspecto distintivo entre o metro ocidental e o indiano. 

2. Tratamento das unidades de tempo.

O segundo aspecto de distinção é a forma de fixar e tratamento as unidades tempo nas duas tradições (a ocidental e da tala indiana), pode se explicado da seguinte forma: 

Enquanto na música ocidental dividimos de forma regular uma determinada unidade de tempo sempre em unidades de duração menor. Na música indiana as unidades são adicionadas ou subtraidas da duração da unidade de tempo, assim gerando uma unidade de tempo (ver figura a baixo). 

Na figura abaixo encontramos a mais conhecida técnica de manipulação do ritmo utilizada por Messiaen, a técnica de valores adicionados.

4 avarta ou avarttanam = ciclo.
5 De forma extremamente sucinta podemos descrever a segmentação rítmica indiana em três níveis: avarta ou avarttanam = ciclo; vibhag ou ariga = subseção do ciclo; matra ou natai ou laghu = unidade de tempo.






Exemplo 1.

No exemplo acima as diferenças entre os sistemas são visíveis. No sistema ocidental a unidade é subdividida em durações (usando normalmente os números 2 ou 3) cada vez menores e regulares em reelação ao valor inicial, assim o metro (ou compasso) onde esta unidade esta inserida permanece sempre constante e imutável. Já no sistema aditivo temos durações que são somadas à unidade gerando assim valores tanto simétricos quanto assimétricos (números pares e impares).

Talvez essa seja a principal característica assimilada por Messiaen no estudo das teçi-tâlas. Essa assimétria do ritmo é uma marca registrada na obra do compositor.

👀O balanço entre simétria e assimetria é um elemento comum na música indiana. 


Messiaen aplica as idéias aditivas e subtrativas na métrica ocidental para cria irreversível balaço assimétrico no metro e no ritmo.

Pra quê fórmulas de compasso?




Exemplo 2.
🔍Análise:
No exemplo acima, usamos a rangâbharana que é uma das 120 teçi-tâlas encontradas no tratado de Sharngadeva. Se tentarmos de encaixar esta teçi-tâla em fórmulas de compassos convencionais como 2/4 e 4/4 (b) obtivemos insucessos
Isso ocorre por causa do ponto de aumento na última semínima da célula que adicionando a esta ¼ do seu valor. Esta adição "corrompe" a estrutura convencional do compasso, tornando-o incompatível ao metro proposto na sua fórmula. 
Já com a fórmula composta de 9/8 (c) conseguimos encaixar a teçi-tâla, contudo a figura apresenta contratempos dentro da divisão internamente o compasso (a arsis ou “cabeça” do segundo tempo do compasso é suprimida com a segunda semínima), gerando uma divisão errádica em termos de uma divisão convencional6 do compasso. 
Nossas alternativas de encaixar a rangâbharana passam para o plano de combinação de fórmulas diferentes de compasso (d e e) onde obtivemos sucesso. 
Contudo geramos aqui uma descontinuidade, pois temos que sempre modificar a fórmula de compasso para “encaixar” as figuras rítmicas. Nesta condição temos que tratar com uma miríade de possibilidades diversas (e assimétricas) de divisão do metro musical. 
6 Por divisão convencional do compasso entendemos como aquela divisão onde temos exposta a percepção os tempos “fortes” ou principais de cada figura que divide o compasso, exemplo: numa formula de 2/4 temos a “batida” da primeira e da segunda semínima que compõem a divisão do compasso.
Estes tipo testes e as impossibilidades encontradas na tentativa de acomodar as fórmulas rítmicas das teçi-tâlas, provavelmente foram a fonte para Messiaen desenvolver técnicas como adição nas figuras rítmicas.
Outras técnicas adaptada por Messiaen foram a aumentação e diminuição rítmica. Estas técnicas consistem na soma ou subtração de durações a duração de uma determinada figura rítmica, dessa forma expandindo ou diminuindo a duração da figura. 
Ao observar a estrutura de algumas teçi-tâlas Messiaen pode ter constatado esta possibilidade técnica no manuseio do ritmo. Vejamos os exemplos extraídos da tabela de teçi-tâlas reproduzida no livro de Robert S. Johnson7 sobre o compositor.

Exemplo 3.
🔍No exemplo acima temos três teçi-tâlas que servem para exemplificar como Messiaen utilizou as técnica de adição. 
Na primeira figura do exemplo a temos a teçi-tâla ratitîla podemos observa que entre a primeira e a segunda temos um o aumento da duração da figura rítmica que serve de unidade (de colcheias para semininas) temos a adição de uma colcheia na duração de cada figura. 

Em b observamos a "aumentação" da duração de todas as figuras da célula rítmica inicial. operada através da adição de uma semicolcheia em cada uma das das colcheias e a adição d emais uma semicolcheia ao final da célula. 

Na figura temos uma espécie de "jogo" de adição e subtração. Esse jogo de adição/subtração ocorre tanto nas figuras rítmicas individualmente quanto nas células rítmicas8.
7 Messiaen. Univerty of California Press.1989. Appendix II 206-10 pp.

3. Ritmo não-retrogradáveis
Para finalizar, vamos conhecer o que Messiaen chamou de ritmos não-retrogradáveis (RNR). A ideia dos ritmos não-retrogradáveis é bem simples, eles são células rítmicas que apresentaram a mesma divisão original quando lidos de trás para frente. 

O RNR foi largamente utilizado na obra Messiaen com base para seu contraponto rítmico. Temos como exemplo mais icônico o Quatuor pour la fin du Temps
As três teçi-tâlas abaixo ilustram essa ideia dos ritmos não-retrogradáveis com clareza.

Exemplo 4.
🔍No exemplo as três teçi-tâlas apresentam ritmos não-retrogadáveis, mesmo com diferentes extensões temos a impossibilidade de variação partindo da inversão da ordem de leitura (Messiaen, adorava “O Charme das Impossibilidades”).
8 É interessante observar que o sistema de adição utilizado por Messiaen também utiliza pausas no processo de adição de valores em conjuntos de figuras rítmicas.



Bom, espero que tenham gostado! Grande abraço.




Referências:

India: (II) Theory and practice of classical music by Harold S. Powers. In Groves dictionary of music and musicians, vol. 8 91-125 pp.

GRIFFITHS. Paul. A Música Moderna: uma historia concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1987.

JOHNSON. Robert S. Messiaen. Los Angeles: University of California Press. 1989.

MESSIAEN. Olivier. The technique of my musical language. Paris: Alphonse Leduc. 1956.







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