quinta-feira, 25 de abril de 2024

Harmonia Modal 2: Os acordes por Quartas

 

Por Marcello Ferreira Soares Jr


Oi pessoal, antes de começar sugiro ao leitor que leia o artigo anterior sobre Harmonia Modal (LINK).


A maior parte da música que ouvimos geralmente segue preceitos da música tonal: melodias baseadas numa escala maior ou menor, com acordes construídos a partir de terças sobrepostas. Esses acordes de terças têm dentro do contexto tonal funções claras de tensão e relaxamento.


Nesse texto, escrito com muito "sazón", irei usar como base diversos autores, mas com ênfase em Vincent Persichetti e Frederick Pease. Além de anotações pessoais


Em outros contextos como a harmonia modal, o atonalismo e o Pantonalismo tentam contornar essa lógica. Uma das ferramentas utilizadas com mais frequência são os chamados “Acordes por Quartas” ou “Acordes Quartais”. Eles são acordes construídos com intervalos quartas justas sobrepostas: Esses acordes normalmente apresentam uma sonoridade ambígua, pouco identificável em termos funcionais. Por isso, são excelentes para alguns tipos de composição modal. Principalmente, no Jazz e estilos mais experimentais (progressivo, trilhas sonoras, música eletrônica, Ambient Music ou alguma canção da Bjork).

 

Os acordes por quartas não foram uma novidade do século XX. Eles eram bem conhecidos na música tonal e modal. Os acordes por quartas podem ser encontrados identificados em corais de J. S. Bach como resultado de ornamentações de acordes, também podemos encontrá-los em composições polifônicas medievais como engendramentos contrapontísticos.


Por que usar?


Os acordes por tríades quando usados para harmonizar uma melodia modais demandam atenção e cuidado para não “cair” na sonoridade tonal (maior e menor). Isso ocorre porque os acordes triádicos com dissonâncias (por exemplo 7º e 9º), pois em muitos casos esses acordes contêm o trítono que “chama” a tônica maior e menor.


Vamos observar a seguinte situação:


Partindo do nosso foco: elaborar uma harmonização para minha composição modal que fuja da sonoridade tonal.


Para isso, resolvi tentar utilizar como ponto de partida os acordes sobre as tônicas dos modos e para dar um tempero modal aos acordes irei incluir na estrutura desses acordes as Notas Características [NC] (ver artigo anterior LINK).

Na ânsia de querer ser o original numa prática que por baixo deve já ter uns mil anos. Não observei o óbvio: as NC dentro dos acordes sobre a tônica do modos geram o trítono que “chama” uma resolução na tônica tonal da escala maior que deu “origem” ao modo. (ver artigo anterior LINK).

Mas, e agora? Quem poderá me defender?


Os acordes por quartas!


Os acordes por quartas são resultado da sobreposição de intervalo que o classifica, o intervalo de 4º. Nele todos os intervalos internos se encontram equidistantes, dessa forma, é inviável definir um modo (maior ou menor); definir uma fundamental ou uma função dentro da harmonia tonal para esse acorde.

Essas características tornam esses acordes um elemento fundamental para seu uso na harmonia modal. De acordo com Persichetti:

A indiferença dessas harmonias sem fundamental  para com a tonalidade coloca todo o peso da análise “tonal” na voz que possui a linha melodia mas ativa”. (Harmonia no Século XX - Aspectos Criativos e Prática. Pág 80) 

Essa observação de Persichetti sedimenta algo que nunca deve ser esquecido na composição modal: a concepção da harmonia vem sempre depois da melodia! 

No artigo anterior sobre harmonia modal (LINK) destaquei a importância primordial da melodia nesse tipo de composição.

Em seu texto sobre os acordes por quartas (com três notas) Persichetti classifica os acordes pela distribuição dos intervalos de 4º justa e 4º aumentada dentro do acorde. Assim temos três tipos

:

  1. Formados por duas quartas justas: justo-justo;

  2. Formados por uma quartas justas e uma quarta aumentada: justo-aumentada;

  3. A inversão da ordem anterior: aumentado-justo.

A partir daqui irei me deter um pouco sobre o primeiro tipo justo-justo para fim didáticos com o objetivo de facilitar a compreensão dos conceitos.


Características

  • O acorde por quartas, mesmo invertido, irá sempre manter um  intervalos por quartas em sua estrutura.

  • Já os acordes com mais notas  (4, 5 notas ) irão manter mais de uma relação de intervalos por quartas em sucessão ou sobreposto.

  • Cada disposição da inversão irá apresentar uma gradação diferente de suavidade e aspereza na sonoridade do acorde. Sendo os acordes mais abertos de sonoridade suave e os fechados mais ásperos.


Manuseio

Não há restrição a duplicação de qualquer nota que compõem um acorde por quartas.

  • Sendo que as duplicações de notas internas geram riqueza harmônica ao som do acorde;

  • Já as duplicações de notas extremas (baixo ou soprano) reforçam ou destoam da nota da melodia. A dissonância em relação à nota da melodia pode ser um mecanismo de “charme” para sonoridade de sua composição.

Podemos elaborar uma espécie de campo harmônico com acordes por quartas. Sobrepondo esse modelo de construção de acordes sobre as notas de um modo. Em minha prática costumo utilizar os acordes do tipo justo-justo, alterando cromáticamente seus intervalos internos para assegurar o formado de sobreposição de 4º justas.

Construí um campo harmônico sobre o modo C mixolídio, basicamente, os acordes usam notas contidas na escala que serve de base. O quarto e o sétimo acorde sofrem alterações cromáticas, nota Mib no soprano do quarto acorde e as notas Mib e b no sétimo acorde. Isso ocorre para manter o padrão justo-justo.

Os acordes de quarta apresentam uma ressonância própria quando são constituídos por 4 notas diferentes. Uma forma de usar esse atributo é criando “sequências de acordes” com um único acorde por quartas por meio de inversões. A sensação de movimento surge graças a variação da fundamental do acorde e a distribuição dos intervalos internos.

        

Os acordes por quartas são perfeitos para desestabilizar nossa sensação harmônica tonal. Mas isso não quer dizer que ele vai nos remeter ao modal. Para utilizá-lo de forma convincente no universo modal é necessário utilizar um dos pilares técnicos do modalismo, o baixo pedal sobre a tônica do modo. Esse procedimento servirá de imã para nossa atenção. 

No exemplo abaixo, temos uma melodia construída sobre D dórico harmonizada com um sequência de um único acorde por quartas sobre a tônica do modo (Ré).  

Vamos ouvir o trecho primeiro sem a nota pedal (Link) e em seguida com a nota pedal (Link).

Notem a diferença sutil de “gravidade” ao redor da tônica do modo mesmo com o efeito de suspensão provocado pelo acorde de quarta. 

Algo interessante para trocar o modo usado na melodia é a suspensão desse pedal por algum tempo. Os acordes por quarta irão assumir sua natureza de desestabilizadores da sensação tonal, e será possível passar de um pedal de um modo para outros. Vamos ouvir o exemplo abaixo. (LINK).

Usei o exemplo anterior e o completei com dois compassos apenas com acordes (os acordes dos compassos 4 e 3 respectivamente) sem nota pedal ou melodia e logo em seguida adicionei uma melodia em G mixolídio com um pedal com a nota tônica do modo. No exemplo, utilizei modos que apresentam as mesmas notas D dórico e G mixolídio (os dois são “declinações” de escala de C Maior), isso foi proposital para tornar a compreensão do processo mais simples. Minha sugestão de estudo é tentar fazer o mesmo com modos com notas que contenham notas diferentes, por exemplo, C dórico e D mixolídio e/ou utilizando um acorde por quartas ou um conjunto de acordes diferentes para cada modo.

Acordes “close-up” ou de aproximação

Sobre o uso de conjuntos de acordes, particularmente, creio ser bem prático o uso de acordes por quartas advindos de “campos harmônicos” ou utilizando um dica valiosa de Pease, os acordes “close-up” ou de aproximação (tradução livre).

Esses acordes de “aproximação” consistem em acordes que são avizinhados de um determinado acorde. Por exemplo, construímos nosso campo harmônico de acordes por quartas sobre o modo D dórico (nesse exemplo irei apresentar os três tipos de acordes por quartas propostos por Persichetti), o acorde sobre a tônica do modo terá naturalmente um vizinho acima e outro abaixo. Pease chama esses vizinhos de paralelos.

  

Para criar mais possibilidades, Pease sugere a alteração cromática desses acordes paralelos, os transpondo um semitom acima o acorde paralelo que está abaixo e rebaixa em um semitom o acorde paralelo que está acima. E ela chama esses acordes de cromáticos (nada criativo, né?).  

Com esses conceitos simples é possível produzir uma rede de relações de acordes vizinhos paralelos e cromáticos para todos os acordes de um campo harmônico de acordes por quartas.

Agora é só pôr mãos à obra!



Adendo: Acordes por quartas dentro da harmonia funcional


Já sabemos que os Acordes por quartas (AQ) não tem função tonal (tônica, dominante, subdominante) ou modo que o caracteriza (Maior ou menor), mas eles podem ser usados dentro da Harmonia funcional. Vou apresentar dois exemplos rápidos.


1. Ornamentação:


O AQ aparece em na harmonização como uma espécie de "acorde de passagem" resultado do movimento de vozes próximas na harmonia. Sua sonoridade produz uma suspensão. Particularmente, acho que soa bem numa cadência entre o acorde de subdominante ou acorde substituto da subdominante e o acorde de dominante:


No exemplo, estamos na tonalidade de F maior e temos uma cadência perfeita. O acorde substituto da subdominante vib7 (Ré com sétima menor) passa para um AQ. Esse AQ que poderia também ser analizado como um acorde de vib74add (Ré com sétima e 4º adicionada ou um acorde de V9º e 6º add sem a terça) que segue para o acorde de dominante. As vezes os AQ por resultarem dos movimento das vozes dentro e entre os acordes estão "escondidos" da música tonal.


Alguns tipos de acordes tonais se "relacionam" melhor com os AQ em termos de enlace das vozes.



Normalmente, os acordes de quarto notas de com sétima e nona sem a terça são os mais simples de ir e voltar para um AQ. Pois apenas necessitam de movimentar um só voz. Os acordes de sétima maior e menor já necessitam do moimento de suas vozes.


2. Acorde pivô em uma modulação.


Por ser ambiguo em qualquer tonalidade os AQ são excelentes como acordes pivô, principalmente, para tonalidades que não são vizinham no círculo das quintas.


O AQ torna a modulação "suave" no enlace dos acordes.


Também costumo usar o AQ para sair e entrar no tonal. Ou seja, numa composição modal ou serial faço um enlace com um AQ e sigo na harmonia tonal ou vice-versa. O divertido é experimentar e descobrir seus caminhos.


Bom, vou ficando por aqui. Espero que vocês tenham gostado e que seja proveitosa a leitura. Abraços


Referências:

Anotações pessoais.

Harmonia no Século XX: Aspectos criativos e práticos. Vicent Presichetti.

Jazz Composition: Theory and Practice. Frederick Pease.

Materials And Techniques Of Twentieth-Century Music. Stefan Kostan

Thesaurus Of Scales And Melody Patterns. Nicolas Slonismsky

Modal Jazz: Composition and Harmony. Ron Miller.


terça-feira, 23 de abril de 2024

Harmonia Modal: Uma introdução


Por Marcello Ferreira Soares Jr

Harmonia Modal

A harmonia modal permite tanto uma música de movimentos esparsos, incertos e etéreos (Jazz, Minimalismo, Ambient Music). Como também composições dinâmicas, energéticas e assertivas (Blues, Soul, Música brasileira, EDM, Música folclorica, black Metal Rock) e composições com elementos étnicos e folclóricos.


Falar sobre a harmonia modal e tentar “explicar” um pouco de seu funcionamento é algo que sempre pensei em fazer, mas nunca tinha “cabeça” ou tempo para elaborar e escrever. Mas ainda bem que existe o ócio! 


Nesse texto vou me fixar nos chamados modos gregos/eclesiásticos: Jônico, Dórico, Frígio, Lídio, Mixolídio e Eólio (ou excluir o Lócrio). Também farei menção à escala acústica e a pentatônica. [Postagem: Relações dentro dos Modos: ferramentas de analise, aplicação e ensino.]


Senta que lá vem a história.


Na prática musical tonal, se entende como função da harmonia “sustentar” a  melodia através de sequências de acordes com funções definidas. Pois, o tonalismo funciona por meio dessa relação de funções entre a melodia e os acordes. Essa relação entre melodia, acordes e funções gera a grande beleza da música tonal, a sensação de “profundidade”. Uma espécie de terceira dimensão da percepção das alturas na música.


Essa terceira dimensão foi um dos diversos elementos que colaboraram para a ruptura entre a música modal e tonal. E com tonalismo, possibilitaram uma nova gramática expressiva para a música. Algo como uma nova língua que poderia dizer o quê, até então, parecia indizível. 


Vários outros processos estéticos e técnicos também foram importantes na busca dessa nova gramática musical, como podemos ler sobre o nascimento da ópera (link). Assim, após um longo processo que começa com os compositores renascentistas (se forçarmos um pouco podemos voltar até Dunstable) passando J.S. Bach, Jean-Philippe Rameau e a pá-de-cal assentada pelos filhos de Bach e os classicistas(*). 


Claro, apesar de não ter essa tridimensionalidade, a música modal manteve seu charme, como  a versatilidade rítmica e métrica, além da encantadora familiar fluidez melódica. A música modal é como lanche na casa de vovó, quando se é criança, você sempre lancha a mesma coisa… Mas sempre é delicioso.    


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Pausa para uma digressão:


(*) As mudanças da prática musical são reflexos do pensamento, filosofia, costumes e  política de um determinado contexto temporal ou geográfico. Por exemplo, a busca pela melodia única para ser a voz única de uma personalidade ou sentimento, foi impulsionada pelo novo pensamento renascentista que valorizava o indivíduo como único e importante, algo reforçado pelo humanismo iluminista e hoje posto no individualismo contemporâneo. 


Então, a música como qualquer outra expressão artística humana não nasce do vácuo. Ela é imbuída pelo contexto do mundo que cerca o indivíduo que a cria e opera.


Gosto de uma frase que ouvi uma vez: A música ou as músicas que você produz e/ou te agradam (que você não produz e/ou desagradam) dizem muito sobre você. E você, como indivíduo com suas condição social, psicológica, intelectual diz muito sobre a música que produz e/ou consome música e te agrada (que você não produz e/ou desagradam).

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Podemos dizer que o interesse pelo modalismo na música ocidental voltou ao horizonte no século XX, com as experimentações de compositores como Debussy, Satie e posteriormente ascensão do Jazz (como esse gênero que, ao mesmo tempo, é erudito e popular). 


O Jazz que foi a mola que impulsionou muito da música que conhecemos hoje, durante os  anos 50 do século XX, teve em compositores como Miles Davis, John Coltrane e Dave Brubaker especuladores na tentativa de elaborar “formas” de conceder às melodias modais uma “terceira dimensão”. É muito provável que a ideia genitora desses experimentos foram os “vamps” (ostinatos) de 12 compassos do blues (Esses vamps são até hoje utilizados para “harmonizar” melodias modais baseadas nas escalas pentatônicas e no modo mixolídio).


O fascínio pela “reintegração” do modal a linguagem harmônica  impulsionou a criação de obras exemplares e processos de composição, popularização de maneirismos, formulação de teorias e aplicações. O modalismo voltou a se disseminar na música popular ao ponto de ser comum (desde a década de 60 do século XX) composições que transitam entre o modalismo e o tonalismo de forma natural. Isso graças a tal Harmonia Modal.


Harmonia Modal


Quem é?


A música, independente de gêneros da música atual (aqui faço a uma exceção a música experimental dentro e fora do ambiente da música de concerto ou acadêmica) utilizam para organizar a estruturas das alturas o “modelo” melodia “harmonizada” por acordes com determinadas funções. E esse modelo passou a ser também aplicado à música modal.


Claro, apesar de usar ferramentas e processos aparentados com a Harmonia Tonal, a Harmonia Modal apresenta resultados sensíveis e perceptivos diferentes. E aqui entre nós, esse é o “charme da coisa toda”. [Postagem: Resumo esquemático para estudar harmonia funcional]


Sendo curto e grosso, eu poderia te dizer que a harmonia modal é “um conjunto de usos práticos e teorizados que visam replicar, de forma aproximada, o processo de interação entre melodia e harmonia existente na Música Tonal, mas com suas próprias relações entre as melodias e os acordes e funções”. 


Quem já estuda música vai concordar que essa não é a melhor conceitualização do universo. Mas serve para dar uma ideia ao leitor um pouco mais leigo e serve aos nossos fins nesse texto.


Onde vive?


A Harmonia Modal tem suas bases nos modos extraídos de diferentes “ordenações” das escalas Maior e Menor Natural. Não vou me deter sobre a teoria dos modos, pois, já temos um artigo nem amplo no blog. 


Bom, apesar de historicamente os modos que chamamos de gregos ou eclesiásticos se desenvolveram por meios diversos. Aqui para fiz didáticos vamos partir do princípio que os modos podem ser vistos como um espraiamento das escala maior e menor natural.

Exemplo 1


Vamos pensar da seguinte forma: toda escala musical heptatônica é um arranjo de sete intervalos dentro de um intervalo de oitava. De forma, os modos podem ser pensados como rearranjo desse conjunto interno de intervalo.



Na teoria musical contemporânea, os modos comuns no ocidente (dórico, frígio, lídio e mixolídio) são gerados a partir da escala maior. Usamos as mesmas notas da escala maior, modificamos apenas a ordem na qual elas se apresentam. Essa modificação na ordem de apresentação das notas, gera outras escalas com os intervalos internos diversos daqueles presentes na escala maior que os originou.


Na figura acima, vemos como os modos mixolídio e dóricos tem suas alturas provenientes da escala de C maior. Para gerar o modo mixolídio dentro da escala de C Maior, é preciso passar a delimitar o intervalo de oitava que engloba os 7 intervalos da escala heptônica, não mais entre a nota dó e sua repetição uma oitava mais aguda. E sim entre a nota sol e sua repetição uma oitava mais aguda. Em resumo, na escala C Maior tenho as notas na seguinte ordem: dó - ré - mi - fá - sol - lá - si - {}; já no modo G mixolídio tenho:  sol - lá - si - dó - ré - mi - fá - {sol}. As mesmas notas ordenadas de forma diferente.


Quando comparamos a escala de C Maior e o modo G mixolídio, podemos verificar uma ligeira diferença na distribuição do intervalos (em Tom [T] e Semitom [ST]) segundo tetracorde da escala e do modo. 


Vamos guardar esse apontamento: Na prática musical atual é entendido que as alturas que compõem um modo são provenientes de alguma escala maior.


Essa variação de intervalos dentro da escala vamos chamar de Intervalo Característico (IC) de cada modo que a difere da escala maior ou menor natural. Ele ocorre no intervalo musical entre a nota da tônica do modo e a nota que marca o intervalo que se altera em relação a escala maior que deu origem ao modo. Essa nota não é fixa, ela varia de acordo com o modo. E a nota que forma o intervalo junto com a tônica de Nota Característica (NC). 


Muitos compositores e músicos usam a sonoridade gerada por essa NC e/ou IC para uma criar variação da sonoridade escala C maior dentro de uma composição ou improvisação. Sem apelar para a modulação tonal. Contudo, para isso é necessária uma manipulação da harmonia do trecho, caso contrário, na melhor situação, você pode cair numa modulação não intencional que pode soar desconexão com a composição.  


Tento essas informações vamos conhecer algumas abordagem para harmonização dos modos. 

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Só uma observação: Quando eu me refiro ao modo jônico como o modelo da escala maior, estou me referindo ao desenho e distribuição dos intervalos dentro da oitava desse modo. Esse tipo designação dos modos serve para fins de observação e distinção de cada conjunto de intervalos contidos nos modos.   


Afinal, na prática, o modo jônico não existe! O que temos é a Escala Maior.

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Dos modos


Modos é disso que se alimenta o modalismo. Os modos podem ser os comuns modos “gregos”, escalas pentatônicas (ocidentais e orientais), escalas hexatônicas (tons inteiros), octatônica, modos de Messiaen, ragas da música tradicional indiana ou persa e etc. Cada uma delas tem sua própria forma de modo de abordagem, seja ela, tradicional ou contemporânea.


É interessante ter uma ideia de como o modalismo foi abordado durante o tempo. Vamos começar do “início” pegando como exemplo de melodias monódicas de linguagem modal da música antiga e folclórica, podemos observamos alguns aspectos característicos:


- As melodias modais usam, prioritariamente, as notas contidas em um único modo (dórico, mixolídio, escalas pentatônicas e etc);


- O desenho da melodia modal gira em torno de sua tônica e o que vamos chamar aqui de nota característica (NC). Ele deve ser continuamente apresentado na melodia como forma de reafirmar a sonoridade do modo. Outra nota importante no desenho modal tradicional é a sua “sensível modal”  que dependendo do modo utilizado na composição é a nota que se localiza na distância de uma intervalo de segunda (maior ou menor) acima ou abaixo da tônica do modo.


- Tradicionalmente a nota tônica do modo é utilizada como um pedal grave executado junto com a melodia com o objetivo de reforçar a sonoridade do modo.


Só para não dizer que não falei…. Na música modal contemporânea, temos muitos aspectos que burlam essas características citadas, como: 


- A mudança da tônica do modo ou o intercâmbio de diferentes modos dentro de uma mesma melodia; 


- Os contornos melódicos que evitam a presença ou escondem a tônica. 


Aqui estou me referindo apenas a melodias monódicas. Se entrarmos no contraponto esse texto não vai acabar nunca!


Colocando os acordes em cena


Aí alguém levanta e diz: - Tá então como os modos são escalas diferentes da escala maior é só fazer o campo harmônico sobre a escala e mandar ver!


SQN!!!!


Houston, temos um problema! E adivinha? Ele é o trítono! 


O trítono! “Desde os tempos mais primordios”! 


Muitos autores alertam para o cuidado com o trítono dentro da harmonia modal. O trítono é um velho conhecido do modalismo, principalmente, de quem estudou contraponto modal. Esse intervalo é um desestabilizador das relações modais. Na harmonia modal, ele volta à cena como outro papel, não menos complicado. Mas vamos entender porque esse papel.


Função do Intervalo Característico [IC]


Vamos olhar para a figura abaixo.


Notem que os IC têm uma função clara. Anular o trítono que gera a tensão que busca uma resolução no intervalo de terça maior entre tônica e 3º nota que caracterizaria o modo Jônico. 


Vamos ver o caso dos “modos menores”.


O modo Eólio que é o “modelo” para os modos menores, dentro da harmonia tonal se caracteriza como a escala menor natural, que por sua vez, é a relativa menor da escala Maior (Jônico). Então da mesma forma que os IC presentes no Lídio e no Mixolídio “anulam” o trítono que caracteriza a sonoridade da escala maior. Nos modos menores, da mesma forma, só que de forma indireta, os IC anulam o trítono que da escala maior relativa do Eólio.  


A ocorrência do trítono na estrutura harmônica tonal é um sinalizador característico de onde estamos e para onde vamos (ou podemos ir) na harmonia tonal. O estudo da harmonia funcional exemplifica e potencializa a importância do trítono dentro do tonalismo.


Por causa desse protagonismo do trítono na música tonal em muitos textos sobre harmonia modal surgir uma máxima: na harmonia modal é necessário evitar ou neutralizar os trítonos dentro da estrutura harmônica. 


Mas atenção: Isso pode ser encarado como uma verdade dentro de um contexto e algo falso dentro de outros contextos. A questão não é o usar ou o fugir do trítono. O importante é saber qual sonoridade modal que se deseja para sua música. Assim da mesma forma que é necessário entender esse esforço para evitar esse trítono em um contexto específico. O mesmo conhecimento é válido para podermos usarmos “outros trítonos” na harmonização de melodias modais.  


Vamos voltar ao apontamento posto acima: As alturas que compõem um modo são provenientes de uma escala maior.  


Por exemplo, o modo C mixolídio tem as seguintes alturas: dó, ré, mi, fá#, sol, lá, si. Essas são as mesmas alturas encontradas na escala de G maior; por suas vez o C dórico apresenta: dó, ré, mib, fá, sol, lá, sib notas presentes na escala de Bb Maior. 



Então, alguém pensa: a coisa é simples! Vou construir um campo harmônico e tentar aplicá-lo da mesma forma que utilizamos na harmonia tonal/funcional nos trará algumas complicações. Mas vamos tentar entender o porquê dessa situação.


Na figura abaixo temos o campo Harmônico C maior, o campo harmônico de C lídio (modo com tônica homónima de C) e G maior (escala maior de onde provém as alturas que compõem o modo de C lídio). 




De acordo com Persichetti:


“Os acordes modais {sic} de terças, que não {são compostos apenas} das tríades, necessitam de especial atenção, pois o trítono, presente em vários acordes de sétima e de nona, insinua a sétima de dominante da escala maior; o que pode, então, facilmente perder seu sentido tônico e deslizar para uma escala maior. Nos modos (com exceção do jônico), os acordes úteis são de sétima e de nona são aqueles que não envolvem o trítono.” Harmonia no Século XX: Aspectos Criativos e Prática - Vicent Persichetti. Pág 26.


Persichetti resume muito bem o cuidado com o uso do trítono e, ainda dá uma boa dica, tudo em um único parágrafo (até por isso ele é um grande autor e seu escrevo num blog obscuro…KK). E sua dica é simples: tá bom, o trítono que caracteriza a dominante (notadamente no acorde de V dominante e vii meio diminuta) de uma tonalidade não é legal para a sonoridade modal. Mas podemos fazer uso dos demais acordes!


Em seu livro Harmonia Funcional, o professor e compositor Koellreutter, classifica os acordes de uma campo harmônico como acordes de função principal e secundária, a saber:


Funções principais: I Tônica, IV Subdominante e V Dominante;

Funções secundárias: acordes relativos e anti-relativos das funções principais: ii, iii, vi e viiº.


Persichetti sugere uma classificação similar para o uso dos acordes de um campo campo harmônico construído sobre um modo. Vamos listar essa classificação nos modos dórico, frígio, lídio e mixolídio e analisar um exemplo:


Modo dórico

Funções principais: i, iiº e IV ;

Funções secundárias: bIII, v e bVII

Tríade diminuta vi


Modo frígio

Funções principais: i, bII e vii ;

Funções secundárias: bIII, iv e vi

Tríade diminuta vº


Modo lídio

Funções principais: I, II e vii ;

Funções secundárias: iii, V e vi

Tríade diminuta #ivº


Modo mixolídio

Funções principais: I, V e bVII ;

Funções secundárias: ii, IV e vi

Tríade diminuta iiiº


Mas é um erro na Harmonia Modal pensar os acordes com funções. Apesar de existir uma espécie de “centro tonal” ao redor da nota tônica de um modo, por exemplo, a nota Sol no modo G mixolídio. Na Harmonia Modal, como os acordes não apresentam funções de tensão e relaxamento como conhecemos no contexto tonal. Ou seja, um acorde certo não está condicionado a resolução em outro acorde. Como não há uma hierarquia regida por funções nenhum acorde tem de resolver no acorde sobre a tônica do modo. Os acordes são de certa forma independentes entre si.


Contudo, para funcionar com acordes compostos por tríades e baseados no campo harmônico é necessário manter a centralidade da tônica do modal sem cair funções diatônicos tonais dos acordes. Por isso, evitar o trítono diatônico do acorde dominante e do sensível é tão importante.


Apesar de toda essa “regulamentação”. O trítono da dominante de uma tonalidade pode ser usado na harmonia modal. O importante é saber como usar ou que “regras” usar para isso! 


A harmonia modal funciona dentro de uma contexto estatico e pendular. Pois há uma centralidade ao redor da tônica do modo e o acorde sobre ela construido. É o que podemos chamar de Harmonia Estática (Harmonia Estática é a harmonia que oscila em torno de um acorde, normalmente o tônico, ou às vezes uma dominante; Já a Harmonia Dinâmica pode ser entendida como aquela que trabalha com progressões de acordes com um ou mais pontos e saída e chegada. São nossas conhecidas progressões de acordes).


 

No trecho acima, temos uma melodia no modo dórico. A harmonização o acorde sobre a tônica predomina, mas ocorre um movimento pedular entre o acorde sobre a tônica e e outros que se encontram dentro do "campo harmonico" que pode ser construído o modo dórico [Eb e Bb] que são respectivamente os graus bIII e bVII (na classificação vista acima no texto) como um acorde estranho ao campo harmônico, o acorde de Fmb7 (no campo harmônio sobre o modo dórico o IV é um acorde maior). O movimento de pêndulo na harmonização centraliza o som da tônica, mesmo "acorde estranho" não nos "distrai", Pois ele soando sub a nota tônica sustentada na melodia.   


Vamos analisar outro trecho abaixo:


Clique aqui para ouvir.


Escrevi esse trecho para exemplificar algumas coisas que utilizo na minha prática. A ideia musical é uma melodia construída sobre o C mixolídio de forma aproximada a comumente usada na música brasileira. Logo de cara, no primeiro compasso, temos a tríade ascendente do acorde sobre a tônica que alcança a nota Sib que é a nota que vai caracterizar o acorde (e o IC de sétima menor que distingue o modo C mixolídio da escala de C Maior). A nota Sib é sucedida pelas notas que compõem o modo num desenho descendente até alcançar a nota tônica no compasso final.


Definida a melodia resolvi lançar mão de uma harmonização modal. Mas para tornar a coisa toda mais interessante resolvi usar os acordes maiores sobre as notas Dó, Fá e Sib. Acordes que dentro do contexto modal proposto por Persichetti dois acordes com funções principais I, VII (C e Bb respectivamente) e um de função secundária IV (F). Mas que no contexto da escala de F Maior e no contexto da Harmonia Funcional são dominante e subdominante (C e Bb respectivamente) e tônica (F). 


Embolou tudo né? Em um momento fico falando que temos que evitar as funções que nos remetem ao tonalismo, e quando escrevo um exemplo, eu resolvo usar justamente os acordes das três principais funções tonais. Como dizia o sábio: O lance é saber os atalhos do campo!


Usei três atalhos para tornar esses acordes da harmonia funcional “soarem modais”:


1. O acorde de C (que é o aquele que pertence à tônica do modo) é o mais presente na harmonia. Eu o utilizo dentro da “lógica” da nota pedal fazendo com que ele soe o suficiente para afirmar a tônica. Para assegurar que nossa atenção não se desvie da tônica. O acorde sobre ela está a soar ou sendo atacado na parte forte do primeiro tempo de cada compasso onde temos o desenho descendente do modo. Já os acordes de F7 e Bb são atacados nas partes fortes dos tempos fracos dos compassos e sua função é meramente ornamental.  


2. Notem que na segunda e terceira aparição do acorde de C (compasso 3 e 5 respectivamente) ele apresenta a b7 que, por sua vez, junto a terça do acorde formam o trítono da dominante do campo harmônico de F Maior. Mas ouçam com cuidado, esse trítono não “parece” solicitar a resolução no acorde de F. Isso muito por causa da forma que a melodia é construída (na música modal a melodia é sempre o primeiro passo!). Ela não “direciona” nossa atenção para as funções tonais e sim a tônica do modo que está sempre sendo afirmada com o acorde sobre essa tônica. 


3. Para manter o foco na tônica observem que o acorde de F7 no segundo compasso está na segunda inversão, ou seja, com a  nota Dó no baixo. 


E aí? Foi bom para você? 


Para concluir vou listar alguns usos da minha experiência pessoal:


  • Uso dos modos que se diferenciam da escala Maior (Jônio) e da escala Menor Natural (Eólio) com Lídio, Mixolídio, Dórico e Frígio;

  • Manter a centralidade na tônica modal (ou o acorde sobre ela);

  • O desenho melódico é quem vem primeiro e é vai determinar os acordes que o apoiam;  

  • Observar a métrica da melodia, pois ela é um farol que pode nos orientar quando ou não usar usar determinados acordes; 

  • Uso de Ostinato que enfatizem a tônica do modo ou um acorde sobre essa tônica;

  • Utilizar com frequência a nota tônica do modo como nota pedal;

  • Evitar utilizar acordes dominantes da tônica Tonal, por exemplo, G7 a C.


E o mais importante: O foco da música modal está nas melodias e frases melodicas. A harmonização - apesar de importante para beleza música - é um aspecto secundário para identidade sonora modal.

Os acordes na harmonia modal não cumprem “funções”, por esse motivos não há uma determinação que faz com que um acorde deva ir em direção a outro acorde como, por exemplo, na harmonia funcional ocorre com o acorde de Dominante que resolve no acorde da Tônica. Talvez poderiam chamar de “funcionais” aqueles acordes que ressaltam a tônica do modo utilizado. Já os demais acordes, podem ser, com o devido manejo, ornamentos sonoros. Por outro lado você pode achar isso tudo uma bobagem e ter suas próprias ideias e formas de uso. E isso é ótimo!!


Finalmente, creio que é bom ter em mente que a harmonia modal, geralmente, não temos fórmulas fixas de cadência ou progressões de acordes. Cada gênero ou estilo e até músicos/compositores irão apresentar seus próprios maneirismos. O que podemos dizer com algum grau de correção, é que não é um universo ilimitado de possibilidades. Contudo, permite espaços para “jogarmos nos atalhos” ou como diria Messiaen com o “charme das impossibilidades”.


Segue Harmonia Modal 2: Os acordes por quartas LINK


Referências:


Anotações pessoais.

Harmonia no Século XX: Aspectos criativos e práticos. Vicent Presichetti.

Jazz Composition: Theory and Practice. Frederick Pease.

Materials And Techniques Of Twentieth-Century Music. Stefan Kostan

Thesaurus Of Scales And Melody Patterns. Nicolas Slonismsky

Modal Jazz: Composition and Harmony. Ron Miller.


Harmonia Modal 2: Os acordes por Quartas

  Por Marcello Ferreira Soares Jr Oi pessoal, antes de começar sugiro ao leitor que leia o artigo anterior sobre Harmonia Modal ( LINK ). A ...