quarta-feira, 6 de maio de 2015

Primórdios da Polifonia no século XIII: Ars Antiquæ; Organum; Escola de Notre Dame

A Europa – e por extensão, o Ocidente – moderna nasce no século XI, este período entre os anos 1000 e 1100 d.C. assistiu o renascimento da economia européia; o aumento populacional; a fundação de muitas das cidades modernas; a conquista da Inglaterra pelos povos Normados; o inicio da reconquista da Espanha; a fundação das primeiras universidades e traduções do grego e árabe, além do nascimento da literatura em língua vernácula. O Principal marco deste “renascimento” da Europa foi a divisão definitiva das igrejas do Ocidente e Oriente em 1054.

A música não ficou isenta desta fase de distinção, em alguns aspectos ela começa a se distanciar de suas raízes orientais e se formatar da maneira que a conhecemos hoje, vamos a um resumo dos principais aspectos:

·         Composição: aos poucos a improvisação foi sendo substituída pela composição definitiva. Antes, a cada interpretação a melodia de uma canção sofria alterações, pois as melodias eram passadas oralmente. Contudo, graças ao desenvolvimento de uma notação musical que permitia registrá-las as melodias com mais precisão, estas melodias passaram a ser reproduzidas como compostas. Elas se tornaram composições, ou seja, passaram a existir na forma que foram concebidas, independente de serem executadas ou não.

·          Princípios Estruturadores ou ordenadores: a música começa a ser criada a partir de princípios “conscientes”, em outras palavras, regras de utilização de modos, ritmos; forma e tratamentos das consonâncias.

·         A polifonia: este que é um fenômeno que se tornou marca registrada da música ocidental, apesar da polifonia não ser de forma alguma um aspectos exclusivo da música ocidental, foi no ocidente onde ela encontrou seu maior grau de desenvolvimento, por conseqüência da notação musical das alturas e ritmos. Temos que convir que o preço desta especialização, foi uma diminuição das sutilezas melódicas encontradas na música de outras civilizações. Entretanto, apenas na música ocidental encontraremos o grau tão alto de complexidade polifônica consciente e planejada.

Todas estas reformas ocorreram ao logo dos séculos de modo gradual. O século XI assiste o inicio do caminho que levou a afirmação da polifonia [Séc. XII] como uma nova maneira de criar música. É importante sabermos que a monodia e a improvisação não foram completamente abandonadas, continuaram a ser utilizadas e a foram revitalizadas mais tarde em diversos períodos da música.       
  
Ars Antiquæ: O Organum Primitivo e a escola de Notre Dame

Não se sabe ao certo em que momento os compositores passaram a usar a polifonia, acreditasse que ela já era usada na música sacra não litúrgica e na música secular como elemento ornamental. A polifonia primitiva consistia na duplicação da melodia principal em intervalos de terças; quartas ou quintas isso ocorria ao mesmo tempo do uso de heterofonia sobre a melodia principal. Os registros mais antigos desta prática são do século IX, contudo, não há nenhuma referência de que ela consistisse numa proposta de um novo processo de composição, era sim, apenas uma indicação de algo que já vinha sendo exercitado já há algum tempo. 

A palavra Organum foi inicialmente utilizada para identificar um tipo de obra, onde uma voz era improvisada abaixo de um cantochão. Depois passou a designar vários estilos de Polifonia primitiva entre os Séculos IX e XIII, na Europa ocidental. Consistia basicamente na adição de uma ou mais vozes a um cantochão já existente.

Organum Paralelo

Os organum paralelos são as primeiras obras polifônicas que se tem notícia.No século IX, já era comum adicionar outra voz para acompanhar a voz principal do cantochão, embelezando a sonoridade do canto. Neste contexto a melodia do cantochão passou ser chamada Vox Principalis ("voz principal"), e a voz acompanhante de Vox Organalis (“voz organal”). Inicialmente, estas vozes eram harmonizadas paralelamente no sistema de nota-contra-nota, ou seja, para cada nota da voz Principal temos uma nota na voz organal. A voz organal era normalmente escrita abaixo da voz principal, em geral, em intervalos de oitava, com o tempo se passou a utilizar os intervalos de quarta e quinta. Comumente, a Vox Principalis era um cantochão e a Vox Organalis improvisava. Este tipo de composição chamava-se Organum Paralelo. Esta forma de escrita foi largamente utilizada em composições com grupos maiores que duas vozes, entretanto, as vozes dividiam-se entre as que apenas duplicavam a voz principal e a que duplicavam a voz organal. Um exemplo desta forma de escrita seria a duplicação da vox principalis uma oitava abaixo e a duplicação da vox organalis acima das outras três[ilustração 2]. Surgiram a seguir outros tipos de Organum: o Livre e o Meslimático. Em resumo temos três tipos iniciais de escrita polifônica:

Ilustração 1 Organum Paralelo

Ilustração 2 Voz organal duplicada uma oitava acima


Organum Livre
Desenvolvido no período subseqüente ao organum paralelo, o organum livre iniciasse quando os compositores passam a experimentar vários tipos de movimentos na voz organal: paralelo ou direto, oblíquo, contrário na voz organal. Passar a usar intervalos de uníssono, oitava, quinta e quarta. Nesta técnica a vox organalis passa a ser escrita acima da vox principalis. Contudo, o organum livre mantém o sistema de escrita de nota-contra-nota do Organum Paralelo.


Ilustração 3 tipos de movimento

Ilustração 4 Organum Livre

Organum melismático
No Século XII, o sistema de escrita de nota-contra-nota foi gradativamente sendo abandonado em favor de um estilo de escrita. Nele as notas da voz principal passaram a ser escritas em valores rítmicos mais longos e ela passou a ser chamada de Tenor (do latim tenere, que significa manter). O tenor mantinha as notas longas enquanto a vox organalis se desenvolvia um linha melódica baseada em agrupamentos de notas com valores rítmicos mais curtos, criando uma melodia sinuosa cantadas numa única sílaba do texto. Esta técnica passou a se chamar melisma.

Ilustração 5 Organum Merismático – verso: Senescento mudano filio

Escola de Notre Dame

A construção da Catedral de Notre-Dame de Paris foi decidida pelo Bispo Maurice de
Sully, logo após sua eleição, no final 1160 ou início de 1161. A construção começou em 1163 e continuou até 1245. Sendo que o altar-mor foi consagrado em 1182. Uma obra como esta na Idade Média não trazia apenas status para a igreja, mais também para a cidade que a comportava. Pois para manter uma catedral era necessário dispor de uma grande infra-estrutura. Assim, muitas das grandes mentes da Europa convergiram para Paris, o que resultou na a fundação universidade sedentária. Este contexto transformou a cidade de Paris um pólo artístico e cultural. E finalmente com vinda da família real, a cidade também se tornou um centro de movimento político-econômico da Europa cristã.
A música, neste ambiente experimentou um desenvolvimento sem precedentes. Pois diferente dos primeiros anos da Idade Média, os músicos que desenvolviam sua arte quase que isoladamente nos mosteiros espalhados pela Europa, passaram a ser reunidos num único lugar, assim a criação e o desenvolvimento técnico passaram a conhecer um nível nunca visto antes na Europa medieval.  

Dois aspectos colaboraram com este desenvolvimento: a igreja passa a aumentar a complexidade e pompa das cerimônias. Desta forma, as congregações passaram a competir entre si cada uma dispondo de um corpo de músicos. Além disso, nobreza passa a incorporar música na sua vida doméstica, a própria família real mantinha uma trupe de cantores e músicos disponíveis.

Neste contexto, os músicos da chamada Escola de Notre Dame entram para a história da música ocidental como personagem decisivoa, pois sistematizando o uso da polifonia e de uma notação rítmica coerente, a musica mensurabilis. Mudaram os rumos da criação musical do ocidente.

O primeiro período da música polifônica é chamado de Ars Antiquæ (também chamado de Ars Ars Vetus Veterum) refere-se à música produzida no período entre 1170 e 1310, abrangendo o período inicial de escola de Notre Dame. A Ars Antiquæ é uma conseqüência do desenvolvimento musical ocorrido nos séculos IX e XII, quando surgiram e se desenvolveram as primeiras formas polifônicas: Moteto, conductos, discantus. Na História da Arte este período é conhecido como Gótico. E teve como principal centro Paris.
O principal centro de atividade musical da Paris Gótica era a catedral de Notre Dame, dela faziam parte de um grupo de músicos consagrados em sua época, entre eles estão dois que passaram para a história como os primeiros compositores polifônicos conhecidos: Leonin e Perotin

Leonin ou Leoninus (Paris, c. 1135 – 1201), era francês, a única referência feita a ele, foi registrada um século após sua morte por um monge britânico anônimo, que o descreveu como: "o maior compositor de organum para amplificação do serviço divino". Mestre de capela da igreja de Bienheureuse-Vierge-Marie (viria a ser a catedral de Notre Dame). Leonin foi o primeiro grande representante da Escola de Notre Dame, era considerado o melhor compositor de organa do seu tempo. Não foi encontrado qualquer documento que pudesse estabelecer a sua biografia, nem qualquer manuscrito que lhe pudesse ser atribuído com certeza. É atribuída a Leonin a autoria do Magnus liber organi (que do século XIII). Magnus liber organi de gradali et antiphonarii pro servitio divino multiplicando (c.1160-1180).


Ilustração 6 Organum Duplum – Aleluia Pascha Nostrum

Sua escrita consistia em primeiro escolher uma melodia apropriada do repertorio do cantochão, em seguida era escrito sobre ela a vox organlis, esta pratica era conhecida como Organum Duplum. Tecnicamente falando, fazia-se a seguinte operação: sobre a melodia do cantochão era colocada em valores muito longos e a voz organal era sobreposta ora por melismas, ora na forma de nota contra nota.

Pérotin, chamada de Perotin le Grand ("o Grande") ou Perotinus Magnus Magister (Mestre Maior) também era francês, nascido em Paris entre 1155 e 1160 e morreu cerca de 1230. Considerado o mais importante compositor da Escola de Notre Dame. Revisou o Magnus Liber (atribuído a Leonin) entre 1180 e 1190, adaptando seu repertorio ao estilo mais moderno praticado em sua época, ou seja, ampliou as obras de duas vozes para três e quatro vozes (Organum Triplum e Quadruplum respectivamente). Perotin também foi importante para o desenvolvimento da escrita dos modos rítmicos e o desenvolvimento de estilos como o discante.

Pouco se sabe sobre sua vida, entre as fontes confiáveis estão os tratados teóricos de Johannes de Garlandia datados da segunda metade do século XIII. Sua obra mais importante é Viderunt Omnes, o que foi encomendado pelas autoridades da Igreja para celebrar o dia de Natal do ano 1198.

Modos rítmicos

Era um esquema rítmico baseado na métrica da poesia. Foi usado na Idade Média e desenvolvido pelos compositores da Escola de Notre Dame.
No tratado De mensurabili musica, atribuído a Johannes de Garlândia, escrito por volta de 1240. Este modelo é pela primeira vez exposta como estudo. Existiam de seis modos rítmicos principais, embora na prática somente os três primeiros fossem mais usados. Eram eles:



1. Troqueu - semilonga/curta
Semínima-colcheia - compasso 3/8
2. Jâmbico - curta/semilonga
Colcheia-semínima - compasso 3/8
3. Dáctilo - longa/curta/semilonga
Semínima pontuada-colcheia-semínima - compasso 6/8

4. Anapesto - curta/semilonga/longa
Colcheia-semínima-semínima pontuada - compasso 6/8
5. Espondeu - longa/longa
Semínima pontuada-semínima pontuada - compasso 3/8 ou 6/8
6. Pírrico - curta/curta/curta
Colcheia-colcheia-colcheia - compasso 3/8 ou 6/8




Ilustração 7 Modos rítmicos

Ilustração 8 Aplicação dos Modos

Podiam-se construir agrupamentos rítmicos maiores tendo como base cada modo. Esse modelo foi utilizado até no século XIV. Os modos também eram usados com sutis variações, como veremos a seguir.

Discante e Clausula

Apesar do Organum ser baseado numa melodia original escrita sobre um tenor extraído do repertorio do Cantochão, com o tempo, os músicos começaram a adicionar um novo trecho as composições, onde tanto o tenor quanto o organum teriam melodias originais. Este novo estilo passou a se chamar Discante o trecho com melodias originais Clausula. A clausula não tinha texto ela era basicamente um vocalize sobre uma silaba. A voz principal passava a ter uma divisão rítmica mais rápida, baseada em variações dos modos rítmicos. No exemplo abaixo temos o uso de variações sobre o modo Espondeu:


Ilustração 9 Exemplo de Discante, com a Clausula destacada.

Moteto

O desenvolvimento do moteto é vinculado a Escola de Notre Dame, no século XIII. O termo moteto é derivado de mot, que significa: palavra em francês. Ele é um gênero musical polifônico surgido no século XII. Ele tem sua origem ligada a clausula do discante, inicialmente, os compositores passaram destacar a clausule e adicionar textos a suas melodias, usavam-se um texto distinto para cada voz. O moteto se tornou uma das grandes formas da música polifônica, sendo o apogeu de seu uso no contraponto modal do século XVI, ele desfrutou de grande importância até o período barroco e também foi retomado por alguns compositores românticos em suas obras sacras.

O a voz aguda do duplum passa a ser designada como Moteto, posteriormente com Perotin ocorre o acréscimo de outra voz sobre o duplum, o triplum, com uma divisão rítmica igual ou ligeiramente mais rápida.

Os textos usados muitas vezes não tinham qualquer conexão contextual, misturava-se um texto religioso e um texto secular que abordavam diferentes temas sem qualquer problema. Pois a preocupação dos compositores é muito mais ajustar as palavras ao ritmo das melodias do que a o contexto temático. Este tipo de composição mais tarde passou a ser identificada como moteto politextual.

Os principais nomes da escola de Notre Dame: Leonin e Perotin foram seus primeiros grandes autores. Um exemplo do estilo inicial de moteto é Salve salus hominum-O radians Stella preceteris-Nostrum, este moteto de Leonin é baseado na Clausula derivada do organum Alleluia Pascha nostrum. Os textos não têm qualquer relação com o versículo da Aleluia, contudo, os dois se completam em sentido de serem textos de exaltação a Virgem.
Observe que os modos rítmicos são bem obedecidos:

  • No Triplum e no Duplum temos o terceiro modo. Contudo em alguns trechos temos rápidas variações sobre as estrutura dos modos (estas variações estão assinaladas com hastes sobre elas).
  • No tenor (chamado de Cantus na partitura) temos variações do quinto modo.
Notem também que por terem de metros diferentes os textos do Triplum e Duplum sobrepõem inícios e finais de frases, sem nunca se encontrar, o compositor teve de planejar e ajustar bem os metros dos textos para se encontrem no compasso final.  Já o tenor faz o papel de nota pedal (nota pedal é nota sustentada por tempo indeterminando) num longo melista sobre as silabas da palavra Nostrum.

Vamos escutar com atenção o moteto Salve salus hominum - O radians Stella preceteris - Nostrum, ele foi montado sobre a clausula do duplum Alleluia Pascha Nostrum, o triplum nada mais é que um arranjo sobre a melodia do duplum. Mas tarde este motete foi adaptado para a música secular no motete Qui d’amour veut bien - Qui longuement poroit- Notrum. Observe como as métricas das frases se defasam:


Ilustração 10 Salve salus hominum-O radians Stella preceteris-Nostrum

O moteto tornou-se umas das formas musicais mais populares no final da Idade Média e no Renascimento. Surgiram estilos como o Franconiano onde a escrita das melodias se liberta em certa escala da rigidez dos nos modos rítmicos. Abaixo temos um belo exemplo o conhecido moteto Pulecete-Je Langius-Domino


Ilustração 11 Moteto: Pulecete-Je Langius-Domino de meados do Séc. XIII

Podemos observa que quanto mais aguda a melodia, mais rápida é sua divisão rítmica, cada voz com um modo rítmico diferente; O tenor com o quinto; o Moteto evolui com base do segundo e o Triplum usa versões do sexto. Quanto ao texto é curioso observar que quanto mais copioso o texto ele é colocado numa melodia rápida.

Já no final do século XIII o moteto passou por varias modificações. Passaram e existir basicamente dois tipos:

1.       Com o triplum muito rápido, numa divisão próxima a da fala, o Duplum ou moteto mais lento e o tenor passou a ter uma estrutura mais rígida e a ser executado por instrumentos.

2.       Que tinha no tenor o texto secular em língua vernácula, e todas as demais vozes evoluíssem num ritmo próximo, contudo, muitas vezes o Triplum tinha a melodia principal e era escrito mais rápido.      

Ainda podemos destacar os motetos de Petrus de Cruce (Pierre de la Croix) que escreveu Triplum numa velocidade inédita em relação as outras vozes. É importante entender que não havia a idéia de uma melodia principal com outras melodias servido apenas como acompanhamento. A idéia do moteto Petroniano de destacar fortemente o Triplum acabou se tornando um estilo de escrita que nos períodos seguintes será a base para o desenvolvimento de outras formas de música secular, onde uma melodia passa a se destacar sobre as demais.


Ilustração 12 Moteto Petroniano

Conductus

Outro gênero que se popularizou com os compositores de Notre Dame foi o conductus, ele era o cântico usado nas procissões. O conductus pode ser considerado a primeira forma de composição totalmente original, ele foi um importante modelo para vários gêneros de canção secular polifônica que se seguiram ele. O conductus foi caído em desuso a partir de 1250.


A melodia do conductus não tinha como base uma melodia do cantochão o compositor criava tanto as melodias quanto o texto de cada composição. O texto era sempre tratado na melodia de forma silábica, ou seja, uma nota para cada silaba, tendo sempre como base o estilo de nota contra nota com algumas poucas variáveis. Diferentemente do moteto, o conductus usava o mesmo texto para todas as vozes, assim tínhamos duas, três e até mais vozes cantando o mesmo texto. Contundo em alguns casos fragmentos de melodia ou frases inteiras eram trocadas entre as vozes, Por exemplo: enquanto uma voz cantava a melodia A e outra voz cantava a melodia B, em outro momento da execução podia ocorrer uma inversão entre as melodias.

Alguns conductus apresentavam trechos longos sem letra, estes trechos eram chamados Caudae, nestes trechos havia uma variedade rítmica maior entres as vozes, próximo do que acontecia nas clausula.


Ilustração 13 exemplo de conductus do séc. XIII: Ave Virgo 

Umas poucas palavras sobre os Suno IA da vida e o apocalipse musical.

Aviso: esse texto contém ironia e é uma opinião pessoal incapaz de qualquer ingerência sobre a realidade... Mas já que eu tinha tempo livre ...